sábado, 6 de dezembro de 2008

A COISA NO SÓTÃO

Estava na sala lendo calmamente um livro. A lareira ardia enchendo de um calor agradável o ambiente, fazendo-me esquecer que era uma noite fria de inverno. Minhas mãos tremiam de excitação enquanto eu folheava as páginas, amareladas pelo tempo, do livro que empenhei toda a minha vida para conseguir: o último livro de J.R.R. Tolkien, publicado um pouco antes dele ter desaparecido misteriosamente quando já estava às portas da morte. O título, Contos Inacabados, havia enchido a minha infância de vários sonhos com elfos, hobbits, cavaleiros empunhando espadas místicas em grandes batalhas, e, agora, me fazia voltar àquelas estranhas terras onde a fantasia e a magia andavam pelo meio dos vivos. Não exagero quando falo que empenhei toda a minha vida em conseguí-lo; de fato, eu o fiz, pois minha paixão pelas obras deste autor era, realmente, gigantesca.

Imagine, então, o leitor, o meu contentamento em ter encontrado numa loja de antigüidades, este livro que, embora castigado pelo tempo e pelos maus tratos, ainda se encontrava em um estado razoável de conservação. Realmente, desde que a “espada-que-fora-partida” voltara a ser empunhada pelas mãos hábeis de Aragorn, eu não sentia uma emoção tão forte em meu coração.

Então, lá estava eu. Na minha sala de estar, ansioso como uma criança, em começar a desbravar novamente os reinos de Tolkien. Comecei a ler.

A noite avançava rapidamente enquanto eu devorava aquelas simples páginas que não poderiam por si só expressar a fantasia, a magia, as aventuras, as lutas, enfim, toda a história que se desenrolava em minha mente:

“O Nazgúl, o ser alado do Reino de Mordor, havia retornado enquanto o grupo se virava para entrar na porta. Rapidamente, Aragorn e Eadör desembainharam suas espadas, virando-se contra o monstro. No entanto este, com um movimento rápido se esquivou das lâminas afiadas e se virou para o mago. O combate que se seguiu foi tão violento que Eadör e Aragorn não ousaram respirar. Eles compreendiam que este era, na verdade, um combate de Titãs, do qual não poderiam fazer parte. Compreendiam, também, que suas vidas repousavam nos ombros erguidos do mago que se concentrava em defender-se magicamente do ataque.

As enormes asas do ser alado, inflamadas pelo ódio de Mordor, rasgavam o ar perto do mago, e este só com enorme agilidade conseguia esquivar-se delas, enquanto, pronunciando palavras que só ele compreendia, fazia sair de suas mãos jatos de luz incandescente que cegavam o Nazgúl. A batalha permaneceu, durante algum tempo, equilibrada. Contudo, o mago estava fraco, e o ser de Mordor, cada vez mais enfurecido pelo seu ódio, parecia ficar mais forte e resistente.

De repente, sua voz se elevou perante os ruídos da batalha, fria e cruel, porém tentando parecer doce e amável: “Por que lutamos, ó Gandalf, o Branco? O desejo de meu Senhor é apenas que te unas a ele. Não achas que duas mentes poderosas como as suas não devem ficar unidas?”

“Sim, se uma delas não estivesse totalmente corrompida pelo mal”, retrucou Gandalf, “Não me aliarei a teu mestre!”

Enquanto dizia, Gandalf concentrou-se num encantamento que o expulsasse para outra região. Suas palavras, desta vez, ecoaram com mais firmeza, e seu bastão erguia-se no ar, descrevendo círculos exóticos. Atrás do monstro começou a se formar, lentamente, um estranho círculo que crescia em espiral. “Agarrem-se à porta!” gritou Gandalf, enquanto seus dois companheiros permaneciam paralisados por tal demonstração de poder, “Não deixe que a passagem os puxe!”

Enquanto eu lia aquelas páginas e sentia o meu coração se acelerar, juntamente com o de Aragorn e Eadör, o vento começou a soprar com mais intensidade pelas persianas de minha janela. O ar que eu respirava parecia estranhamente pesado, quase irrespirável. Achei que estava me embrenhado demais na leitura, mas, já que era um leitor insaciável, não a interrompi, pouco me importando com uma estranha folha silvestre que caía no meu colo. Continuei a ler...

No entanto, algo mais me reservava o destino aquela noite. No exato instante em que eu pronunciava em voz alta as palavras do encantamento de Gandalf, uma vez que não conseguia me conter, algo mudou.

Eu ainda estava na sala, minha sala, mas, por um estranho motivo ela estava mudada. Havia algo mais. Algo sombrio, negro, algo como uma sombra me vigiando. Fechei o livro, assustado, e, ao mesmo tempo, curioso em saber que sensação de terror era aquela. Sentia como se um terror, quase humano, palpável, tivesse passado por mim e subido as escadas na direção do meu sótão.

Não sabia bem porquê, mas tremia de medo quando resolvi, finalmente, investigá-lo. Para minha surpresa, precisei de um estranho apoio para sair da poltrona e caminhar, devagar, em direção à escada: a minha velha bengala, que não utilizava há anos: uma bengala parecida com o bastão de Gandalf, o Branco, na minha imaginação.

Subi as escadas, que rangiam debaixo dos meus pés e, empunhando o bastão à minha frente, abri, lenta e cautelosamente, a velha porta do sótão. Olhei fixamente para dentro, onde a escuridão aumentava. Foi aí que eu ví a coisa. No meio de velhos móveis e objetos, havia dois olhos vermelhos que me fitavam. Compreendi imediatamente o que eram e comecei a me afastar, tomado de um temor súbito. A coisa avançou para mim e, praticamente ao mesmo tempo, a bengala-bastão em minha mão começou a brilhar e a soltar uma luz branca, incandescente. Rolei escada abaixo, ao mesmo tempo que via aquela luz impedir a passagem da mão negra da criatura e fechá-la no sótão. Minha boca se abriu e articulou palavras numa língua desconhecida, em parte repetindo as mesmas palavras que Gandalf pronunciou no último livro de Tolkien.

E foi isso. Ainda ouço, nas noites de muito frio, a coisa rosnar no sótão, provavelmente com saudade da sua antiga terra e do tempo em que voava livre pelos céus da Terra Média, mas nunca, nunca mesmo, tive a coragem necessária para abrir novamente aquela porta que encerrava um dos meus maiores medos. Afinal, eu era uma das raras pessoas a possuir um “Nazgúl de estimação” em casa...

JOÃO NINGUÉM

João Ninguém era um mendigo. Andava pelas ruas da cidade, buscando encontrar algo de bom para comer. Acordava cedo. Nas ruas, acordar cedo era garantia de lucro, de se encontrar nas lixeiras algum alimento. Quem sabe, um sanduíche recém jogado no lixo? Ou ainda (maravilha!) um pouco de cerveja, dentro de alguma latinha ainda fechada...

João era chamado de vários nomes, nunca o seu. “Vagabundo!”, “imundo”, “tarado!”. Estes eram alguns de seus nomes mais comuns. Na verdade, eram tantos nomes que João nem se lembrava mais do seu. E ainda havia aquele outro nome, dado por aquela gente bonita que freqüentava a igreja da esquina: “Pecador!”. João não sabia direito o que essa palavra significava. Só sabia o que ela o tornava. Alguém que não deveria encarar aquelas pessoas da igreja por muito tempo. Que deveria saber seu lugar; e buscar se consertar com Deus antes de atravessar os portais daquele lugar santo.

Um dia, João parou em frente a esta igreja. Do seu interior podia ver luzes e ouvir sons. Uma voz linda (muito mais bonita que qualquer voz daqueles que rodeavam João) se elevava cantando um hino. João se esforçou para ouvir a letra, mas temia que sua presença fosse notada por aquela gente bonita. Por isso, só pôde escutar algumas frases da canção. “Tudo, ó Cristo, a Ti entrego, tudo, sim por Ti darei”.

Ao sair daquele lugar para sua casa-rua, João foi pensando em Deus. Nunca havia ido à igreja, com exceção daquela vez com sua tia, quando ainda era uma criança. Mas, depois disso, não encarava com simpatia a idéia de freqüentar recintos sagrados como aquele. Suas lembranças o levavam de volta àquele tempo de criança. Lembrava-se de permanecer quieto durante o culto, especialmente, quando o pastor falava. Sentada ao seu lado, sua tia, com um olhar, o vigiava, prometendo, em troca do bom comportamento, a recompensa fiel: doces da loja em frente à igreja.

Como estava absorto em seus pensamentos, João não percebeu os dois homens até que fosse tarde demais. Num segundo, havia pontapés e socos vindo em sua direção. João caiu, o gosto de sangue em sua boca, a cabeça doendo terrivelmente. Os dois homens o revistaram e se frustaram com o nada que encontraram. Talvez por essa razão, João continuou sendo surrado até ficar quase morto, coberto de sangue e feridas.

João estava caído na beira da estrada, perto da igreja onde havia ouvido a canção. Estava sangrando muito, aparentemente, com algumas costelas quebradas. Ainda assim, conseguiu ouvir o falatório que anunciava o fim do culto, e perceber o movimento de gente vindo em sua direção. Talvez alguém o ajudasse. Com muita dor, João viu um grupo de pessoas sair da igreja e caminhar pela calçada, onde parte do seu corpo havia sido jogado. João logo se imaginou sendo amparado e cuidado por mãos e rostos amorosos.

As primeiras pessoas que passaram ao lado de João foram dois senhores, conversando animadamente. Um tentava convencer o outro de qual seria o papel social da igreja na sociedade moderna. Deveria ser apenas um lugar de ensino da moral cristã ou também deveria se envolver politicamente? Palavras como “missão eclesiástica” e “agenda social da igreja” aproximaram-se, ecoaram na mente de João, e se afastaram aos poucos de onde ele estava. Aparentemente, não o tinham visto.

O próximo a passar foi um homem que vinha cantando baixinho uma canção. João o tinha visto na igreja, dirigindo o momento dos cânticos. Quando passou, percebeu o homem caído no chão. Imediatamente, desviou o olhar, apressando o passo. Mas não parou de cantar. João pôde ouvir a música suave e doce se distanciando, enquanto tentava, desesperadamente, emitir algum som que chamasse a atenção do homem que se afastava. Outras pessoas também passaram por ele, algumas nem o percebendo, outras lançando rápidos olhares em sua direção. Nenhuma delas, entretanto, esboçava qualquer reação em favor de João. Numa fração de segundos, João percebeu que, de fato, alguns se incomodavam com sua situação, mas, simplesmente, não sabiam como agir. Aparentemente, não haviam recebido nenhuma instrução sobre o que fazer nestes casos. João percebeu, pela primeira e última vez em sua vida, que amor não praticado significava amor não vivenciado. A última lembrança de João antes de perder sua consciência foi a de ver as luzes da igreja se apagando.

João foi encontrado no dia seguinte, às cinco e dez da manhã, por um jovem estudante que ia em direção à Universidade. Assustado, o jovem chamou a polícia que, oficialmente, declarou a hora da morte de Ninguém: três horas antes, naquela madrugada, devido a ferimentos múltiplos que foram seriamente agravados pela gangrena provocada pelo frio da noite. Os policiais não conseguiram identificar o homem conhecido como João. Seu enterro foi exageradamente simples, e, por fim, João tornou-se, ainda mais intensamente, um Ninguém na memória coletiva dos habitantes da cidade.