segunda-feira, 12 de julho de 2010

O CANTO DE ASLAM: uma abordagem do mito na obra de C S Lewis


Gostaria de falar sobre meu novo livro O CANTO DE ASLAM: uma abordagem do mito na obra de C S Lewis.

No livro, busco relacionar teologia e literatura de fantasia (especificamente, de C S Lewis) a partir da análise do mito como elemento essencial à linguagem religiosa, utilizando a lente da Fenomenologia da Religião.

Abaixo, transcrevo uma parte do prefácio escrito pela Gabriele Greggersen:

“Com clareza e objetividade, o autor percorre o legado lewisiano, tanto obras de ficção quanto teológico-filosóficas, com a meta de investigar o papel do mito em seus escritos e sua vida cristã e acadêmica. [...] Para quem duvida que ainda haja "vida inteligente" no mundo protestante e evangélico, esse livro será uma prova não apenas de que há sim, mas também, que ainda existe muito espaço para as idéias de Lewis produzirem lindos e saborosos frutos para o Reino de Deus. [...] Trata-se, a meu ver, de uma pesquisa primorosa em intertextualidade. Assim, conscientemente ou não, o trabalho também redunda interdisciplinar, já que põe as ciências da religião em diálogo com a literatura e a filosofia, quando trata de questões éticas e metafísicas, por exemplo. [...] Desejo a todos uma ótima leitura e bom proveito desse material realmente "de primeira".”

Gabriele Greggersen
Mestre e Doutora em Filosofia da Educação pela FEUSP (Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo); pós-doutora na área de História das Mentalidades, pelo Instituto de Estudos Avançados (FEUSP), e autora de diversos livros.



Aos interessados, o livro encontra-se à venda nos dois sites abaixo:

http://www.editorareflexao.com.br/index.php

ou

http://www.livrariacultura.com.br/scripts/cultura/busca/busca.asp?palavra=canto+de+aslam&tipo_pesq=titulo&sid=91061384512712589618877660&k5=B9C7634&uid=&limpa=0&parceiro=OJPEXT&x=0&y=0


Abraço!

sábado, 3 de janeiro de 2009

P365 (03/01)
CONTO: MOÇA DE FAMÍLIA

Apenas uma vez visitei a cidade de Monte Azul, no interior de Minas Gerais. Não posso recordar de minha curta estada neste lugar sem que o terror invada minha mente. Não culpo meus leitores por não acreditarem em minha história, mas peço, por misericórdia, que a ouçam até o fim e, então, decidam se quem a narra é um louco varrido ou um homem assustado com uma história fantástica, mas real.


Monte Azul era uma cidadezinha simpática, de gente hospitaleira, de pães saídos quentes do forno da única padaria localizada na praça central, de noites agradáveis e dias ensolarados, salvo aqueles nos quais uma brisa leve vinha refrescar os moradores. Era um vilarejo muito bonito, mas igualmente pequeno; na verdade, bastavam apenas quarenta minutos andando a partir da praça para ultrapassar os limites da cidade.


O motivo de minha visita foi um convite feito por meu melhor amigo que comprara uma casinha nos arredores da cidade e queria minha presença enquanto se habituava com o lugar. Meu amigo – Carlos era seu nome – acabara de se formar em Odontologia e desejava, numa mistura de solidariedade e sonho de criança, auxiliar no atendimento em alguma clínica do interior do Brasil. Nossa amizade havia nascido nos tempos de escola, e pemanecido firme durante toda a faculdade. Nada mais natural, portanto, que, assim que recebi a carta-convite, remarquei meus compromissos, fiz minhas malas e peguei o primeiro ônibus para encontrá-lo.


Carlos encontrou-me na rodoviária, que não passava de um ponto de ônibus “melhorado”, com uma pequena construção que possuía a múltipla função de abrigo para o vigia noturno, posto de informações e ponto de referência local. Afixado numa das paredes do abrigo havia um horário rascunhado a caneta, indicando que o próximo ônibus que viesse para a cidade só chegaria na manhã seguinte.

- Bem-vindo! Espero que a viagem tenha sido boa.
- Carlos! – exclamei enquanto o abraçava – Que bom ver você novamente! Tudo bem?
- Sim, sim... tudo bem – ele respondeu, enquanto me ajudava com a bagagem.


Para que o leitor compreenda porque estranhei esta resposta, é preciso falar algo sobre meu amigo: Carlos era um falador incorrigível! Silêncio, para ele, era quase insuportável. Inúmeras vezes, havíamos sido expulsos da biblioteca da escola, debaixo dos olhares recriminadores dos professores, por causa de alguma piada contada por Carlos ou por alguma conversa mais animada. Tédio era uma coisa que ninguém poderia sentir ao estar com ele! Por isso, achei estranho suas respostas quase monossilábicas e seu jeito taciturno. Algo, definitivamente, estava errado. Mas como sempre fui uma pessoa reservada, respeitei o sei direito em não me contar de imediato o que o estava preocupando. Intromissões curiosas já custaram muitas amizades na história humana. Limitei-me, por isso, a comentar a beleza da cidade.

- Puxa! A gente pode sentir o cheiro do interior por aqui! É uma cidade linda!
- É mesmo – respondeu Carlos – Linda é a palavra certa para descrevê-la.

Como continuei a encará-lo, como esperando uma resposta mais elaborada, ele completou:
- E também muito hospitaleira! O povo mineiro faz justiça à fama que tem. Aposto que, mesmo se você não conhecesse ninguém nesta cidade, qualquer pessoa iria recebê-lo em casa com prazer! Eu mesmo já tive a oportunidade de perceber que esse fato é verdadeiro.
- Como assim? – perguntei, desejoso que a conversa se alongasse e pudesse descobrir a razão das preocupações de meu amigo

Carlos olhou-me demoradamente, e, por fim, respondeu:
- Assim que cheguei aqui, fiquei perdido, por incrível que pareça. A casa que comprei fica nos limites da cidade. Por isso, foi meio difícil encontrá-la. É até um pouco engraçado se a gente pensar que a cidade inteira pode ser explorada em menos de duas horas. Mas eu fiquei vagando por aqui e por ali sem encontrar o bendito endereço – Carlos parecia um pouco mais falante e, enquanto andávamos por uma rua de terra batida, continuou sua história – Já estava anoitecendo e eu imaginava que minha primeira noite aqui seria ao relento. Mas foi aí que eu encontrei...
- Encontrou o quê? – disse – Não se interrompa!
- ... encontrei alguma coisa que... encontrei uma mulher. A mais linda de todo o mundo! A gente falava de beleza nos tempos de escola, lembra? Mas ela ultrapassa todos os nossos sonhos juntos! É sério, cara! Não ria! Pretendo me casar com ela!
- Desculpe. – falei, tentando engolir o riso – Mas é que falando assim, nem parece você mesmo... Você costumava dizer que a mulher que o laçaria ainda não havia nascido!
- Eu sei, eu sei! – respondeu Carlos, um pouco irritado (e, por isso, mais próximo ao seu estado natural de falante, com pouca paciência para ser contrariado) – Mas o fato é que ocorreu! Nem sei direito como, mas me apaixonei na noite em que a vi. Foi amor à primeira vista, meu amigo!
- Mas se você está assim, tão apaixonado, por que essa cara de preocupação? Parece que está carregando um piano nas costas!

Carlos olhou para mim, sabendo que eu já havia detectado seu ânimo interior, sem que ele precisasse expressá-lo com palavras.
- Realmente você me conhece. De fato, eu estou com um problema.
- Diga! Eu quero ajudá-lo!
- Bom, tudo começou naquela noite em que cheguei na cidade. Como disse, estava prestes a bater em alguma porta e pedir abrigo, já que não conseguia encontrar o caminho para minha nova casa. Ao mesmo tempo, eu era um recém-chegado, e já estava tarde. Por isso, pensei em passar minha primeira noite aqui ao ao livre. Sentei num banco na praça e descansei meus pés. De repente, senti uma presença atrás de mim. Voltei-me e vi Heloísa.
- Hum... o nome dela é Heloísa – disse, num meio sorriso
- Isso, Heloísa Lupus Hegertz Tesech. Sua família veio da Alemanha, há quase cem anos atrás.
- E veio parar aqui?! Neste fim de mundo? – exclamei, um pouco incrédulo
- Bom, para falar a verdade, não sei direito toda a história – respondeu Carlos – Heloísa ainda não me contou. Mas sua família já está nesta região há pelo menos uns trinta anos. Mas naquela noite, ela me encontrou e me convidou para passar a noite em sua casa, junto com suas irmãs. Fiquei encantado com o convite, não só pela possibilidade de dormir debaixo de um teto e não sob as estrelas, mas principalmente por poder ficar um pouco mais perto dela. Quando você a conhecer, vai me dar razão. Ela é uma moça de família.. Há um brilho especial em seus olhos que... nem sei como explicar....


Carlos caminhou durante algum tempo sem falar. Já havíamos alcançado os limites da cidadezinha, e, ao nosso redor, as poucas árvores davam um ar triste ao lugar. Finalmente, ele continuou:
- Naquela noite, ela me levou à sua casa e me apresentou às suas irmãs. São sete ao todo. Fui muito bem recebido! Conversamos durante a maior parte da noite e, por fim, adormeci num dos quartos de hóspede. Nunca dormi tão bem em toda a minha vida! Na manhã seguinte, sentei-me à mesa para um café-da-manhã maravilhoso e pude conversar durante mais tempo com Heloísa. Fiquei sabendo que seus pais haviam voltado para Alemanha, deixando o seu único irmão como tutor das meninas. Ele estava viajando por aqueles dias, por isso, não o vi. Mas, confesso a você, queria muito encontrá-lo para pedir sua irmã em casamento, pois sei que Heloísa é a mulher da minha vida e o sentimento parece ser mútuo. Depois que encontrei minha casa, voltei quase todas as noites para visitá-la. Hoje faz um mês desde a primeira vez que a vi sob a luz do luar.
- É uma linda história. Mas qual o problema em tudo isso? – perguntei
- O problema, meu amigo, é o irmão dela. Ele está voltando hoje para casa, e eu pretendo formular meu pedido para casar com Heloísa. Quero muito impressioná-lo e pretendo até levar um presente meu para ele. Como uma espécie de dote, sabe? Mas como nunca o vi, estou meio apreensivo, por isso, gostaria que você viesse comigo esta noite, como apoio moral. Você vem?
- Se é apenas isso, vou com prazer. – respondi – Mas você não sabe nada sobre o irmão?
- A única coisa que sei é que ele é o mais jovem da família.
- O mais jovem?! – achei que meu amigo havia se enganado – Tem certeza?
- Isso mesmo, não há engano – respondeu Carlos – O irmão dela, Alberto Lupus, é o caçula. Tem apenas dezesseis anos, mas ele é quem dá as ordens na família na ausência dos pais. Também achei estranho, mas Heloísa me disse que se tratava de um costume antigo, de seus antepassados. O homem é quem deve governar a casa, mesmo sendo ele o caçula na família. E o sinal desta tradição é uma tatuagem em forma de lua no braço. Estranho, mas são costumes diferentes dos nossos. Bem, chegamos. Seja muito bem-vindo ao meu novo lar!


A rua por onde andávamos terminou abruptamente numa leve subida. No alto no morro, estava a casa de meu amigo. Uma belíssima construção de meados do século XIX, fruto da riqueza que abundava na região durante a exploração dos bandeirantes, e, a não ser pela casa de Heloísa, a única edificação que podia ser considerada rica naquela pequena cidade.


Almoçamos uma excelente refeição e colocamos nossa conversa em dia. Carlos parecia ser o mesmo de antigamente, falante e alegre, aparentemente esquecendo-se de suas preocupações. No entanto, a tarde foi avançando e a hora de meu amigo encontrar o irmão de sua amada ia se aproximando rapidamente. Carlos foi ficando visivelmente inquieto, como se a noite que caía trouxesse uma angústia crescente sobre ele. Inúmeras vezes, ele me perguntou se pretendia me casar algum dia, se minha família estava bem, e se não se preocupava com minha ausência de dias. Respondi que não, mas isso não o acalmou. Continuou fazendo perguntas sobre como minha única irmã se sentia com minhas freqüentes viagens que me obrigavam a permanecer longe de casa por vários dias. Respondi que ela nunca ficava sozinha; havia se casado alguns meses antes com um bom homem. Isso, aparentemente, o acalmou. Finalmente, o relógio na parede anunciou as sete horas da noite. Carlos olhou para mim, quase em pânico. Tentei acalmá-lo, mas nenhuma palavra parecia surtir efeito. Qualquer que tenha sido a conversa com Heloísa sobre o irmão, a idéia de conhecê-lo parecia deixar Carlos extremamente ansioso.


- Dará tudo certo. Não se preocupe. – disse, mais de uma vez.
Carlos não respondeu. Limitou-se a olhar para mim mais uma vez com um nervosismo palpável. Levantou-se e fiz o mesmo. Talvez fosse melhor que esse encontro terminasse de uma vez. Carlos parecia não suportar a espera por mais tempo. Por isso, fiz com que andássemos mais rapidamente em direção à casa de Heloísa. Apesar de estar me guiando até lá, Carlos parecia quase um sonâmbulo, forçando-se a indicar o caminho.


Depois de uma pequena caminhada, vigiados pelas estrelas e por uma pálida lua, chegamos à casa. Era imensa, de estilo colonial, e, em muitos aspectos, lembrava a casa de meu amigo. Carlos subiu na varanda e bateu. A porta se abriu e uma jovem lindíssima, de longos cabelos pretos e pele branca como a neve, surgiu, olhando-nos com um sorriso. Carlos ficou imediatamente mais tranqüilo com sua presença. Eu, por outro lado, não pude evitar um calafrio quando vi os olhos da moça. Eram belos sim, mas pareciam frios, como se escondessem um riso que zombava de todas as coisas sagradas. Ela convidou-nos a entrar e, confesso, precisei reunir toda minha coragem para atender ao convite. Carlos, no entanto, parecia ter me esquecido completamente e só tinha olhos para Heloísa.


Entramos na casa e Heloísa nos levou à sala de estar. Como poderia me preparar para o que me esperava naquele instante? Havia sete cadeiras espalhadas num semi-círculo na sala, cada uma ocupada por uma das irmãs. Boa parte da sala permanecia na escuridão, como se nem mesmo a luz do luar pudesse dissipar as trevas naquele lugar. Heloísa permanecia atrás de nós, impedindo nossa saída. No momento em que entramos, uma das irmãs, que parecia ser a mais velha, disse, num tom de voz grave, frio e estéril, com os olhos fitos em mim:


- Bem-vindo à família, Carlos. Nosso irmão certamente se agradará de seu dote. – A mulher levantou-se e disse em voz mais alta – Gabriel, este é nosso irmão.


Aquelas palavras paralisaram meu coração. Mas a cena que se seguiu foi mais terrível. Sempre que fecho meus olhos, posso ver nitidamente o que ocorreu. Das trevas, um enorme lobo, com aspecto quase humano, surgiu, avançando para o meio da sala. Seus membros dianteiros terminavam em garras monstruosas. Não tive tempo de esboçar qualquer reação. O monstro pulou sobre mim, rasgando meu peito e rosto com suas presas. Olhei desesperado para Carlos, que, encolhido contra a parede, tremia de pavor e escondia o rosto nos braços de Heloísa. A última imagem que se fixou em minha mente, antes de perder a consciência, foi a de Carlos sendo envolvido pelos braços de sua amada.


E foi isso. Quando voltei a mim, estava de volta à minha casa em São Paulo. Não tenho a menor idéia de como cheguei ali. Os ferimentos no meu corpo, com o passar dos dias, foram desaparecendo, com exceção de um: uma pequena mordida no meu braço direito, pouco acima do pulso. Ela nunca cicatrizou totalmente, embora ficasse mais visível em noites de lua cheia. Afinal, assim como Carlos, eu também passei a fazer parte da família...

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

P365 (02/01/09)
CHAMADOS PARA GUERRA

Parece estranho que Deus nos queira como guerreiros. Somos, por definição até bíblica, fracos e, por mais firmes que estejamos, pura vaidade.

Parece estranho que pessoas como nós, ainda que alcançados pela graça e amor de Deus, sejam chamadas e contadas como guerreiros para o Senhor. Estranho. O que um Deus soberano e Todo-Poderoso poderia esperar de alguém tão pecador como eu?

Antes de tentar responder, é preciso entender um fato: existe uma guerra ocorrendo. Guerra das trevas contra a luz. Batalha que espelha o choque proveniente do encontro do Reino de Deus contra o império das trevas. No entanto, poucos percebem este fato em nossos dias de festas eclesiásticas. Há uma guerra acontecendo, mas não queremos nos envolver. Afinal, aproximar-se do homem ensangüentado nas ruas de Jericó não é tarefa para nós, ministros da religião. Isso deixamos para o imundo samaritano. Ele que se contamine com os corpos feridos e machucados pela vida. Estamos muito ocupados fazendo a obra de Deus!

Mas, a guerra continua, juntamente com suas vítimas. Seres humanos, esquecidos pela sociedade e pela igreja cristã, perambulam pelas ruas, sem alimento ou abrigo. Crianças morrem às centenas durante as incursões policiais em favelas, ou durante as brigas por território entre facções do tráfico. Doenças, há muito extingüídas ou controladas pela Medicina, são campeãs em solo brasileiro. A Igreja tem respondido às necessidades sociais, mas com muito atraso, e nunca na medida exata que o caos sócio-econômico atual exige. No lugar de levar o pão a quem necessita, muitas igrejas têm vivido um projeto de missão egoísta e ensimesmado, paradoxalmente, construindo templos enormes e luxuosos para homenagear Aquele que disse não habitar em templos feitos por mãos humanas. A estrutura eclesiástica transformou-se em um fim em sí mesma, perdendo de vista, por isso, a vocação samaritana que a igreja deveria possuir.

Além de saber (ou reconhecer) a existência desta guerra, é necessário ser soldado de Cristo. E soldados, em primeiro lugar, precisam agir unidos. Nos tempos antigos, a tática usada para vencer batalhas era a formação de falanges: uma perfeita linha de homens postados com armas e escudos, lado a lado. Com essa formação em unidade, os soldados cuidavam e protegiam uns aos outros. Quando as setas do inimigo buscavam o alvo sempre havia o escudo do soldado ao lado para defender o outro. Agora, já não apenas um companheiro de batalhas, mas um irmão nascido na hora da angústia. Quando um deles era atingido (e isso, às vezes, acontece) os outros cercavam o ferido para que houvesse tempo de cura e restauração. Hoje, isto é muito diferente. Quando um irmão é atingido, verificamos as falhas da sua armadura, zombando da sua inabilidade para a batalha e agradecendo ao Rei o fato de nós não sermos tão pecadores. Esquecemo-nos de que uma das maiores fendas na armadura é criada pelo orgulho, disfarçado por nós como uma espiritualidade mais elevada.

Precisamos nos lembrar também que soldados sempre agem sob uma bandeira que ilustra o caráter do reino no qual servem. E para nós, cristãos, a bandeira que Deus nos oferece é a Graça. Somos chamados por Deus para guerrear usando a Sua graça como arma-escudo-estandarte. No entanto, muitas vezes, a maneira pela qual agimos demonstra que ainda não sabemos de que espírito somos. A Graça de Deus sempre cobre os pecadores. Seus soldados, muitas vezes, querem matá-los. A Graça de Deus sempre busca reconciliação. Seus soldados, em nome de uma santidade não-vivida, buscam separação. A Graça de Deus odeia o pecado e ama e justifica e santifica o pecador. Nós, por demasiadas vezes, invertemos esta ordem.

Precisamos urgentemente resgatarmos esse entendimento de que Deus nos chama à guerra. Charles Colson, escritor cristão, afirmou certa vez que “a preocupação de Jesus não era apenas salvar as pessoas do inferno no mundo vindouro, mas também livrá-las da infernalidade deste mundo presente”. E, por estranho que possa parecer, Deus deseja nos usar como soldados. A mim e a você. E já não é tão estranho. Afinal, nossa fraqueza como soldados é o que garante que o poder do Rei que nos arregimenta será aperfeiçoado através de nós.

sábado, 6 de dezembro de 2008

A COISA NO SÓTÃO

Estava na sala lendo calmamente um livro. A lareira ardia enchendo de um calor agradável o ambiente, fazendo-me esquecer que era uma noite fria de inverno. Minhas mãos tremiam de excitação enquanto eu folheava as páginas, amareladas pelo tempo, do livro que empenhei toda a minha vida para conseguir: o último livro de J.R.R. Tolkien, publicado um pouco antes dele ter desaparecido misteriosamente quando já estava às portas da morte. O título, Contos Inacabados, havia enchido a minha infância de vários sonhos com elfos, hobbits, cavaleiros empunhando espadas místicas em grandes batalhas, e, agora, me fazia voltar àquelas estranhas terras onde a fantasia e a magia andavam pelo meio dos vivos. Não exagero quando falo que empenhei toda a minha vida em conseguí-lo; de fato, eu o fiz, pois minha paixão pelas obras deste autor era, realmente, gigantesca.

Imagine, então, o leitor, o meu contentamento em ter encontrado numa loja de antigüidades, este livro que, embora castigado pelo tempo e pelos maus tratos, ainda se encontrava em um estado razoável de conservação. Realmente, desde que a “espada-que-fora-partida” voltara a ser empunhada pelas mãos hábeis de Aragorn, eu não sentia uma emoção tão forte em meu coração.

Então, lá estava eu. Na minha sala de estar, ansioso como uma criança, em começar a desbravar novamente os reinos de Tolkien. Comecei a ler.

A noite avançava rapidamente enquanto eu devorava aquelas simples páginas que não poderiam por si só expressar a fantasia, a magia, as aventuras, as lutas, enfim, toda a história que se desenrolava em minha mente:

“O Nazgúl, o ser alado do Reino de Mordor, havia retornado enquanto o grupo se virava para entrar na porta. Rapidamente, Aragorn e Eadör desembainharam suas espadas, virando-se contra o monstro. No entanto este, com um movimento rápido se esquivou das lâminas afiadas e se virou para o mago. O combate que se seguiu foi tão violento que Eadör e Aragorn não ousaram respirar. Eles compreendiam que este era, na verdade, um combate de Titãs, do qual não poderiam fazer parte. Compreendiam, também, que suas vidas repousavam nos ombros erguidos do mago que se concentrava em defender-se magicamente do ataque.

As enormes asas do ser alado, inflamadas pelo ódio de Mordor, rasgavam o ar perto do mago, e este só com enorme agilidade conseguia esquivar-se delas, enquanto, pronunciando palavras que só ele compreendia, fazia sair de suas mãos jatos de luz incandescente que cegavam o Nazgúl. A batalha permaneceu, durante algum tempo, equilibrada. Contudo, o mago estava fraco, e o ser de Mordor, cada vez mais enfurecido pelo seu ódio, parecia ficar mais forte e resistente.

De repente, sua voz se elevou perante os ruídos da batalha, fria e cruel, porém tentando parecer doce e amável: “Por que lutamos, ó Gandalf, o Branco? O desejo de meu Senhor é apenas que te unas a ele. Não achas que duas mentes poderosas como as suas não devem ficar unidas?”

“Sim, se uma delas não estivesse totalmente corrompida pelo mal”, retrucou Gandalf, “Não me aliarei a teu mestre!”

Enquanto dizia, Gandalf concentrou-se num encantamento que o expulsasse para outra região. Suas palavras, desta vez, ecoaram com mais firmeza, e seu bastão erguia-se no ar, descrevendo círculos exóticos. Atrás do monstro começou a se formar, lentamente, um estranho círculo que crescia em espiral. “Agarrem-se à porta!” gritou Gandalf, enquanto seus dois companheiros permaneciam paralisados por tal demonstração de poder, “Não deixe que a passagem os puxe!”

Enquanto eu lia aquelas páginas e sentia o meu coração se acelerar, juntamente com o de Aragorn e Eadör, o vento começou a soprar com mais intensidade pelas persianas de minha janela. O ar que eu respirava parecia estranhamente pesado, quase irrespirável. Achei que estava me embrenhado demais na leitura, mas, já que era um leitor insaciável, não a interrompi, pouco me importando com uma estranha folha silvestre que caía no meu colo. Continuei a ler...

No entanto, algo mais me reservava o destino aquela noite. No exato instante em que eu pronunciava em voz alta as palavras do encantamento de Gandalf, uma vez que não conseguia me conter, algo mudou.

Eu ainda estava na sala, minha sala, mas, por um estranho motivo ela estava mudada. Havia algo mais. Algo sombrio, negro, algo como uma sombra me vigiando. Fechei o livro, assustado, e, ao mesmo tempo, curioso em saber que sensação de terror era aquela. Sentia como se um terror, quase humano, palpável, tivesse passado por mim e subido as escadas na direção do meu sótão.

Não sabia bem porquê, mas tremia de medo quando resolvi, finalmente, investigá-lo. Para minha surpresa, precisei de um estranho apoio para sair da poltrona e caminhar, devagar, em direção à escada: a minha velha bengala, que não utilizava há anos: uma bengala parecida com o bastão de Gandalf, o Branco, na minha imaginação.

Subi as escadas, que rangiam debaixo dos meus pés e, empunhando o bastão à minha frente, abri, lenta e cautelosamente, a velha porta do sótão. Olhei fixamente para dentro, onde a escuridão aumentava. Foi aí que eu ví a coisa. No meio de velhos móveis e objetos, havia dois olhos vermelhos que me fitavam. Compreendi imediatamente o que eram e comecei a me afastar, tomado de um temor súbito. A coisa avançou para mim e, praticamente ao mesmo tempo, a bengala-bastão em minha mão começou a brilhar e a soltar uma luz branca, incandescente. Rolei escada abaixo, ao mesmo tempo que via aquela luz impedir a passagem da mão negra da criatura e fechá-la no sótão. Minha boca se abriu e articulou palavras numa língua desconhecida, em parte repetindo as mesmas palavras que Gandalf pronunciou no último livro de Tolkien.

E foi isso. Ainda ouço, nas noites de muito frio, a coisa rosnar no sótão, provavelmente com saudade da sua antiga terra e do tempo em que voava livre pelos céus da Terra Média, mas nunca, nunca mesmo, tive a coragem necessária para abrir novamente aquela porta que encerrava um dos meus maiores medos. Afinal, eu era uma das raras pessoas a possuir um “Nazgúl de estimação” em casa...

JOÃO NINGUÉM

João Ninguém era um mendigo. Andava pelas ruas da cidade, buscando encontrar algo de bom para comer. Acordava cedo. Nas ruas, acordar cedo era garantia de lucro, de se encontrar nas lixeiras algum alimento. Quem sabe, um sanduíche recém jogado no lixo? Ou ainda (maravilha!) um pouco de cerveja, dentro de alguma latinha ainda fechada...

João era chamado de vários nomes, nunca o seu. “Vagabundo!”, “imundo”, “tarado!”. Estes eram alguns de seus nomes mais comuns. Na verdade, eram tantos nomes que João nem se lembrava mais do seu. E ainda havia aquele outro nome, dado por aquela gente bonita que freqüentava a igreja da esquina: “Pecador!”. João não sabia direito o que essa palavra significava. Só sabia o que ela o tornava. Alguém que não deveria encarar aquelas pessoas da igreja por muito tempo. Que deveria saber seu lugar; e buscar se consertar com Deus antes de atravessar os portais daquele lugar santo.

Um dia, João parou em frente a esta igreja. Do seu interior podia ver luzes e ouvir sons. Uma voz linda (muito mais bonita que qualquer voz daqueles que rodeavam João) se elevava cantando um hino. João se esforçou para ouvir a letra, mas temia que sua presença fosse notada por aquela gente bonita. Por isso, só pôde escutar algumas frases da canção. “Tudo, ó Cristo, a Ti entrego, tudo, sim por Ti darei”.

Ao sair daquele lugar para sua casa-rua, João foi pensando em Deus. Nunca havia ido à igreja, com exceção daquela vez com sua tia, quando ainda era uma criança. Mas, depois disso, não encarava com simpatia a idéia de freqüentar recintos sagrados como aquele. Suas lembranças o levavam de volta àquele tempo de criança. Lembrava-se de permanecer quieto durante o culto, especialmente, quando o pastor falava. Sentada ao seu lado, sua tia, com um olhar, o vigiava, prometendo, em troca do bom comportamento, a recompensa fiel: doces da loja em frente à igreja.

Como estava absorto em seus pensamentos, João não percebeu os dois homens até que fosse tarde demais. Num segundo, havia pontapés e socos vindo em sua direção. João caiu, o gosto de sangue em sua boca, a cabeça doendo terrivelmente. Os dois homens o revistaram e se frustaram com o nada que encontraram. Talvez por essa razão, João continuou sendo surrado até ficar quase morto, coberto de sangue e feridas.

João estava caído na beira da estrada, perto da igreja onde havia ouvido a canção. Estava sangrando muito, aparentemente, com algumas costelas quebradas. Ainda assim, conseguiu ouvir o falatório que anunciava o fim do culto, e perceber o movimento de gente vindo em sua direção. Talvez alguém o ajudasse. Com muita dor, João viu um grupo de pessoas sair da igreja e caminhar pela calçada, onde parte do seu corpo havia sido jogado. João logo se imaginou sendo amparado e cuidado por mãos e rostos amorosos.

As primeiras pessoas que passaram ao lado de João foram dois senhores, conversando animadamente. Um tentava convencer o outro de qual seria o papel social da igreja na sociedade moderna. Deveria ser apenas um lugar de ensino da moral cristã ou também deveria se envolver politicamente? Palavras como “missão eclesiástica” e “agenda social da igreja” aproximaram-se, ecoaram na mente de João, e se afastaram aos poucos de onde ele estava. Aparentemente, não o tinham visto.

O próximo a passar foi um homem que vinha cantando baixinho uma canção. João o tinha visto na igreja, dirigindo o momento dos cânticos. Quando passou, percebeu o homem caído no chão. Imediatamente, desviou o olhar, apressando o passo. Mas não parou de cantar. João pôde ouvir a música suave e doce se distanciando, enquanto tentava, desesperadamente, emitir algum som que chamasse a atenção do homem que se afastava. Outras pessoas também passaram por ele, algumas nem o percebendo, outras lançando rápidos olhares em sua direção. Nenhuma delas, entretanto, esboçava qualquer reação em favor de João. Numa fração de segundos, João percebeu que, de fato, alguns se incomodavam com sua situação, mas, simplesmente, não sabiam como agir. Aparentemente, não haviam recebido nenhuma instrução sobre o que fazer nestes casos. João percebeu, pela primeira e última vez em sua vida, que amor não praticado significava amor não vivenciado. A última lembrança de João antes de perder sua consciência foi a de ver as luzes da igreja se apagando.

João foi encontrado no dia seguinte, às cinco e dez da manhã, por um jovem estudante que ia em direção à Universidade. Assustado, o jovem chamou a polícia que, oficialmente, declarou a hora da morte de Ninguém: três horas antes, naquela madrugada, devido a ferimentos múltiplos que foram seriamente agravados pela gangrena provocada pelo frio da noite. Os policiais não conseguiram identificar o homem conhecido como João. Seu enterro foi exageradamente simples, e, por fim, João tornou-se, ainda mais intensamente, um Ninguém na memória coletiva dos habitantes da cidade.