sábado, 3 de janeiro de 2009

P365 (03/01)
CONTO: MOÇA DE FAMÍLIA

Apenas uma vez visitei a cidade de Monte Azul, no interior de Minas Gerais. Não posso recordar de minha curta estada neste lugar sem que o terror invada minha mente. Não culpo meus leitores por não acreditarem em minha história, mas peço, por misericórdia, que a ouçam até o fim e, então, decidam se quem a narra é um louco varrido ou um homem assustado com uma história fantástica, mas real.


Monte Azul era uma cidadezinha simpática, de gente hospitaleira, de pães saídos quentes do forno da única padaria localizada na praça central, de noites agradáveis e dias ensolarados, salvo aqueles nos quais uma brisa leve vinha refrescar os moradores. Era um vilarejo muito bonito, mas igualmente pequeno; na verdade, bastavam apenas quarenta minutos andando a partir da praça para ultrapassar os limites da cidade.


O motivo de minha visita foi um convite feito por meu melhor amigo que comprara uma casinha nos arredores da cidade e queria minha presença enquanto se habituava com o lugar. Meu amigo – Carlos era seu nome – acabara de se formar em Odontologia e desejava, numa mistura de solidariedade e sonho de criança, auxiliar no atendimento em alguma clínica do interior do Brasil. Nossa amizade havia nascido nos tempos de escola, e pemanecido firme durante toda a faculdade. Nada mais natural, portanto, que, assim que recebi a carta-convite, remarquei meus compromissos, fiz minhas malas e peguei o primeiro ônibus para encontrá-lo.


Carlos encontrou-me na rodoviária, que não passava de um ponto de ônibus “melhorado”, com uma pequena construção que possuía a múltipla função de abrigo para o vigia noturno, posto de informações e ponto de referência local. Afixado numa das paredes do abrigo havia um horário rascunhado a caneta, indicando que o próximo ônibus que viesse para a cidade só chegaria na manhã seguinte.

- Bem-vindo! Espero que a viagem tenha sido boa.
- Carlos! – exclamei enquanto o abraçava – Que bom ver você novamente! Tudo bem?
- Sim, sim... tudo bem – ele respondeu, enquanto me ajudava com a bagagem.


Para que o leitor compreenda porque estranhei esta resposta, é preciso falar algo sobre meu amigo: Carlos era um falador incorrigível! Silêncio, para ele, era quase insuportável. Inúmeras vezes, havíamos sido expulsos da biblioteca da escola, debaixo dos olhares recriminadores dos professores, por causa de alguma piada contada por Carlos ou por alguma conversa mais animada. Tédio era uma coisa que ninguém poderia sentir ao estar com ele! Por isso, achei estranho suas respostas quase monossilábicas e seu jeito taciturno. Algo, definitivamente, estava errado. Mas como sempre fui uma pessoa reservada, respeitei o sei direito em não me contar de imediato o que o estava preocupando. Intromissões curiosas já custaram muitas amizades na história humana. Limitei-me, por isso, a comentar a beleza da cidade.

- Puxa! A gente pode sentir o cheiro do interior por aqui! É uma cidade linda!
- É mesmo – respondeu Carlos – Linda é a palavra certa para descrevê-la.

Como continuei a encará-lo, como esperando uma resposta mais elaborada, ele completou:
- E também muito hospitaleira! O povo mineiro faz justiça à fama que tem. Aposto que, mesmo se você não conhecesse ninguém nesta cidade, qualquer pessoa iria recebê-lo em casa com prazer! Eu mesmo já tive a oportunidade de perceber que esse fato é verdadeiro.
- Como assim? – perguntei, desejoso que a conversa se alongasse e pudesse descobrir a razão das preocupações de meu amigo

Carlos olhou-me demoradamente, e, por fim, respondeu:
- Assim que cheguei aqui, fiquei perdido, por incrível que pareça. A casa que comprei fica nos limites da cidade. Por isso, foi meio difícil encontrá-la. É até um pouco engraçado se a gente pensar que a cidade inteira pode ser explorada em menos de duas horas. Mas eu fiquei vagando por aqui e por ali sem encontrar o bendito endereço – Carlos parecia um pouco mais falante e, enquanto andávamos por uma rua de terra batida, continuou sua história – Já estava anoitecendo e eu imaginava que minha primeira noite aqui seria ao relento. Mas foi aí que eu encontrei...
- Encontrou o quê? – disse – Não se interrompa!
- ... encontrei alguma coisa que... encontrei uma mulher. A mais linda de todo o mundo! A gente falava de beleza nos tempos de escola, lembra? Mas ela ultrapassa todos os nossos sonhos juntos! É sério, cara! Não ria! Pretendo me casar com ela!
- Desculpe. – falei, tentando engolir o riso – Mas é que falando assim, nem parece você mesmo... Você costumava dizer que a mulher que o laçaria ainda não havia nascido!
- Eu sei, eu sei! – respondeu Carlos, um pouco irritado (e, por isso, mais próximo ao seu estado natural de falante, com pouca paciência para ser contrariado) – Mas o fato é que ocorreu! Nem sei direito como, mas me apaixonei na noite em que a vi. Foi amor à primeira vista, meu amigo!
- Mas se você está assim, tão apaixonado, por que essa cara de preocupação? Parece que está carregando um piano nas costas!

Carlos olhou para mim, sabendo que eu já havia detectado seu ânimo interior, sem que ele precisasse expressá-lo com palavras.
- Realmente você me conhece. De fato, eu estou com um problema.
- Diga! Eu quero ajudá-lo!
- Bom, tudo começou naquela noite em que cheguei na cidade. Como disse, estava prestes a bater em alguma porta e pedir abrigo, já que não conseguia encontrar o caminho para minha nova casa. Ao mesmo tempo, eu era um recém-chegado, e já estava tarde. Por isso, pensei em passar minha primeira noite aqui ao ao livre. Sentei num banco na praça e descansei meus pés. De repente, senti uma presença atrás de mim. Voltei-me e vi Heloísa.
- Hum... o nome dela é Heloísa – disse, num meio sorriso
- Isso, Heloísa Lupus Hegertz Tesech. Sua família veio da Alemanha, há quase cem anos atrás.
- E veio parar aqui?! Neste fim de mundo? – exclamei, um pouco incrédulo
- Bom, para falar a verdade, não sei direito toda a história – respondeu Carlos – Heloísa ainda não me contou. Mas sua família já está nesta região há pelo menos uns trinta anos. Mas naquela noite, ela me encontrou e me convidou para passar a noite em sua casa, junto com suas irmãs. Fiquei encantado com o convite, não só pela possibilidade de dormir debaixo de um teto e não sob as estrelas, mas principalmente por poder ficar um pouco mais perto dela. Quando você a conhecer, vai me dar razão. Ela é uma moça de família.. Há um brilho especial em seus olhos que... nem sei como explicar....


Carlos caminhou durante algum tempo sem falar. Já havíamos alcançado os limites da cidadezinha, e, ao nosso redor, as poucas árvores davam um ar triste ao lugar. Finalmente, ele continuou:
- Naquela noite, ela me levou à sua casa e me apresentou às suas irmãs. São sete ao todo. Fui muito bem recebido! Conversamos durante a maior parte da noite e, por fim, adormeci num dos quartos de hóspede. Nunca dormi tão bem em toda a minha vida! Na manhã seguinte, sentei-me à mesa para um café-da-manhã maravilhoso e pude conversar durante mais tempo com Heloísa. Fiquei sabendo que seus pais haviam voltado para Alemanha, deixando o seu único irmão como tutor das meninas. Ele estava viajando por aqueles dias, por isso, não o vi. Mas, confesso a você, queria muito encontrá-lo para pedir sua irmã em casamento, pois sei que Heloísa é a mulher da minha vida e o sentimento parece ser mútuo. Depois que encontrei minha casa, voltei quase todas as noites para visitá-la. Hoje faz um mês desde a primeira vez que a vi sob a luz do luar.
- É uma linda história. Mas qual o problema em tudo isso? – perguntei
- O problema, meu amigo, é o irmão dela. Ele está voltando hoje para casa, e eu pretendo formular meu pedido para casar com Heloísa. Quero muito impressioná-lo e pretendo até levar um presente meu para ele. Como uma espécie de dote, sabe? Mas como nunca o vi, estou meio apreensivo, por isso, gostaria que você viesse comigo esta noite, como apoio moral. Você vem?
- Se é apenas isso, vou com prazer. – respondi – Mas você não sabe nada sobre o irmão?
- A única coisa que sei é que ele é o mais jovem da família.
- O mais jovem?! – achei que meu amigo havia se enganado – Tem certeza?
- Isso mesmo, não há engano – respondeu Carlos – O irmão dela, Alberto Lupus, é o caçula. Tem apenas dezesseis anos, mas ele é quem dá as ordens na família na ausência dos pais. Também achei estranho, mas Heloísa me disse que se tratava de um costume antigo, de seus antepassados. O homem é quem deve governar a casa, mesmo sendo ele o caçula na família. E o sinal desta tradição é uma tatuagem em forma de lua no braço. Estranho, mas são costumes diferentes dos nossos. Bem, chegamos. Seja muito bem-vindo ao meu novo lar!


A rua por onde andávamos terminou abruptamente numa leve subida. No alto no morro, estava a casa de meu amigo. Uma belíssima construção de meados do século XIX, fruto da riqueza que abundava na região durante a exploração dos bandeirantes, e, a não ser pela casa de Heloísa, a única edificação que podia ser considerada rica naquela pequena cidade.


Almoçamos uma excelente refeição e colocamos nossa conversa em dia. Carlos parecia ser o mesmo de antigamente, falante e alegre, aparentemente esquecendo-se de suas preocupações. No entanto, a tarde foi avançando e a hora de meu amigo encontrar o irmão de sua amada ia se aproximando rapidamente. Carlos foi ficando visivelmente inquieto, como se a noite que caía trouxesse uma angústia crescente sobre ele. Inúmeras vezes, ele me perguntou se pretendia me casar algum dia, se minha família estava bem, e se não se preocupava com minha ausência de dias. Respondi que não, mas isso não o acalmou. Continuou fazendo perguntas sobre como minha única irmã se sentia com minhas freqüentes viagens que me obrigavam a permanecer longe de casa por vários dias. Respondi que ela nunca ficava sozinha; havia se casado alguns meses antes com um bom homem. Isso, aparentemente, o acalmou. Finalmente, o relógio na parede anunciou as sete horas da noite. Carlos olhou para mim, quase em pânico. Tentei acalmá-lo, mas nenhuma palavra parecia surtir efeito. Qualquer que tenha sido a conversa com Heloísa sobre o irmão, a idéia de conhecê-lo parecia deixar Carlos extremamente ansioso.


- Dará tudo certo. Não se preocupe. – disse, mais de uma vez.
Carlos não respondeu. Limitou-se a olhar para mim mais uma vez com um nervosismo palpável. Levantou-se e fiz o mesmo. Talvez fosse melhor que esse encontro terminasse de uma vez. Carlos parecia não suportar a espera por mais tempo. Por isso, fiz com que andássemos mais rapidamente em direção à casa de Heloísa. Apesar de estar me guiando até lá, Carlos parecia quase um sonâmbulo, forçando-se a indicar o caminho.


Depois de uma pequena caminhada, vigiados pelas estrelas e por uma pálida lua, chegamos à casa. Era imensa, de estilo colonial, e, em muitos aspectos, lembrava a casa de meu amigo. Carlos subiu na varanda e bateu. A porta se abriu e uma jovem lindíssima, de longos cabelos pretos e pele branca como a neve, surgiu, olhando-nos com um sorriso. Carlos ficou imediatamente mais tranqüilo com sua presença. Eu, por outro lado, não pude evitar um calafrio quando vi os olhos da moça. Eram belos sim, mas pareciam frios, como se escondessem um riso que zombava de todas as coisas sagradas. Ela convidou-nos a entrar e, confesso, precisei reunir toda minha coragem para atender ao convite. Carlos, no entanto, parecia ter me esquecido completamente e só tinha olhos para Heloísa.


Entramos na casa e Heloísa nos levou à sala de estar. Como poderia me preparar para o que me esperava naquele instante? Havia sete cadeiras espalhadas num semi-círculo na sala, cada uma ocupada por uma das irmãs. Boa parte da sala permanecia na escuridão, como se nem mesmo a luz do luar pudesse dissipar as trevas naquele lugar. Heloísa permanecia atrás de nós, impedindo nossa saída. No momento em que entramos, uma das irmãs, que parecia ser a mais velha, disse, num tom de voz grave, frio e estéril, com os olhos fitos em mim:


- Bem-vindo à família, Carlos. Nosso irmão certamente se agradará de seu dote. – A mulher levantou-se e disse em voz mais alta – Gabriel, este é nosso irmão.


Aquelas palavras paralisaram meu coração. Mas a cena que se seguiu foi mais terrível. Sempre que fecho meus olhos, posso ver nitidamente o que ocorreu. Das trevas, um enorme lobo, com aspecto quase humano, surgiu, avançando para o meio da sala. Seus membros dianteiros terminavam em garras monstruosas. Não tive tempo de esboçar qualquer reação. O monstro pulou sobre mim, rasgando meu peito e rosto com suas presas. Olhei desesperado para Carlos, que, encolhido contra a parede, tremia de pavor e escondia o rosto nos braços de Heloísa. A última imagem que se fixou em minha mente, antes de perder a consciência, foi a de Carlos sendo envolvido pelos braços de sua amada.


E foi isso. Quando voltei a mim, estava de volta à minha casa em São Paulo. Não tenho a menor idéia de como cheguei ali. Os ferimentos no meu corpo, com o passar dos dias, foram desaparecendo, com exceção de um: uma pequena mordida no meu braço direito, pouco acima do pulso. Ela nunca cicatrizou totalmente, embora ficasse mais visível em noites de lua cheia. Afinal, assim como Carlos, eu também passei a fazer parte da família...

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